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sábado, 26 de julho de 2014

Violência, abuso e Surdez: o Serviço Público está preparado para essa demanda?

     O que fazer quando uma criança Surda, fala em análise, que foi abusada sexualmente e os serviços públicos que acolhem e cuidam dessa demanda não estão preparados para ouvir e prosseguir com o caso?

     Trabalho em uma Instituição de atendimento aos Surdos e lá, temos um limite de atuação. Dependemos de toda uma rede social, prioritariamente pública, para dar prosseguimento ao tratamento daquele Sujeito. Afinal, a Instituição não pode tornar-se uma redoma, e nem deveria, pois o que se quer são sujeitos de direitos, conquistando-os e tendo acesso a todos os bens e serviços necessários à sua vida em sociedade.
     Então, em uma de suas sessões, minha paciente começa a "brincar" e me contar sua brincadeira. Pega uma boneca e um boneco. Eles são primos. Ela sinaliza que o rapaz tem boné e ele está na sua casa, de férias. Faz o sinal do rapaz e faz o seu próprio sinal. Pega a casa de bonecas e diz que é a casa dela e que os dois estão na sala, vendo televisão. A responsável da minha paciente está em casa, no banheiro, pintando o cabelo. Então, minha paciente pega o boneco e senta junto da boneca. Ela pega a mão do boneco e junta com a mão da boneca e sinaliza que ele pegou a mão dela, segurou com força e colocou-a dentro de sua bermuda e ela faz o sinal de "pênis". Depois, diz que isso é feio e que ela não gosta. Pega a mão da boneca e bate no boneco. Fala que não gosta mais dele e pergunto se sua responsável sabe disso e ela sinaliza que não e que não posso falar nada, porque a mesma iria brigar com ela e bater nela.
     É claro que chamamos a família, fizemos um relatório, comunicamos ao Conselho Tutelar. Porém, ela não mora na mesma cidade da Instituição e tudo que é muito difícil, fica mais difícil ainda. Ela vai para a avaliação no órgão criado para apurar suspeitas de abuso e ... ninguém consegue conversar com ela. Como fazer entrevista de revelação se ela não é oralizada e ninguém sabe Libras? A sorte dessa paciente, vamos dizer assim,  é que a família  acreditou nela, não a puniu, pelo contrário, resolveu o caso entre eles e o primo não vai mais na casa dela. Mas, nada se pode fazer no âmbito público.
     A criança continuou em atendimento comigo mais dois anos e por muitas sessões ainda falava desse momento trágico de sua vida. 
      Assim como ela, acredito que muitas crianças Surdas devem sofrer muitos tipos de abuso. Essa paciente, por ter estudado em uma creche bilíngue e ter tido orientação, entendia que aquilo era uma violação de seus direitos. Mas, acredito que muitas, muitas crianças Surdas, que crescem em lares onde a família não se comunica com elas, onde não existem creches e escolas que desde cedo utilizem a metodologia bilíngue para facilitar o acesso ao conhecimento, sofrem violência sem nem sequer saberem que o que estão fazendo com ela é errado. Muitas devem passar por abuso sem reclamar, pois pela falta de orientação, acham que é uma prática comum, normal. Nem passa pela cabeça delas questionar o comportamento abusivo do adulto, pois não entendem o mesmo como sendo abusivo. 
     É primordial que existam cada vez mais profissionais conhecedores da Libras e do universo Surdo, para que pessoas não tenham suas vidas, sua sexualidade marcadas pela violência.
  

quarta-feira, 26 de junho de 2013

O termo Surdez, gerando polêmica!

     O termo Surdez, colocado no nome do meu blog, tem gerado discussões (positivas, espero!) e suscitado
 colocações que me fizeram pensar a respeito da questão psicanalítica da FALTA. 

     A questão era: " Por que usar o termo surdez e não surdo, já que surdez estaria vinculado ao significante patologia?"

      Bom, para começar, pensei ao que o significante patologia estaria vinculado. Então me vieram outros significantes que imagino fazer ligação para o Surdo: doença, deficiência, dependência, limite, perda, falta. E esses significantes estão assim interligados, por que? Bem, por muitos anos, e poderíamos dizer, até séculos, o Surdo foi visto pelos não Surdos, como pessoas fragilizadas, a margem da sociedade, assim como os cegos, cadeirantes, Síndromes de Down, dentre outros. E, com o avanço da tecnologia foram sendo criadas formas de suprir, completar, melhorar, a vida das pessoas em geral, e aí, todos estão incluídos, pois a tecnologia vem para tentar encobrir a falta de todos. Logo, são criados instrumentos, aparelhos, artifícios que sugerem que, se antes faltava, agora não mais.  E então voltamos a questão da FALTA. Que está para todos os seres humanos, incompletos, insatisfeitos e limitados.

     O significante Surdez vem evidenciar uma falta corporal. Falta um tipo de percepção. É isso. Só isso. Mas, é só isso mesmo? Pois a partir dessa falta corporal, foram dados outros sentidos como incapacidade, impossibilidade.
     Ora, mas, em um certo sentido, somos todos, em algum momento da vida, incapazes. Essa é uma determinação da falta que habita cada um de nós.  Em não poder ter tudo, ser tudo, fazer tudo. Mas, ao mesmo tempo, se falta, vamos buscar. E ela que nos move, nos estimula, em uma procura sem fim. Se não houvesse nada faltando, se o Desejo fosse plenamente satisfeito, que horror seria a vida, sem nada a acrescentar em nós mesmos.

      E nesse sentido, não vejo problema em ter esse termo no título do meu blog. Aliás, foi a partir desse termo que se produziu uma discussão. Então, ele diz de uma falta que produz algo.
      Que possamos todos nos apropriar da nossa própria deficiência, da falta que nos habita e que busquemos produzir algo para além!



quinta-feira, 23 de maio de 2013

O discurso ouvinte e o discurso Surdo: isso existe?

   Quem trabalha diretamente com pessoas surdas, "escuta" uma fala muito recorrente. A de que o discurso ouvinte é o discurso dominante e que esse discurso se torna uma imposição social, onde o Surdo se vê excluído devido a barreira linguística. Bem , é preciso analisar com cuidado esse pensamento sustentado pela comunidade Surda e até por alguns ouvintes que trabalham junto ao Surdo, para que esse posicionamento não seja causa de mais discriminação. É muito perigoso generalizar, como se todos os Surdos pudessem ser condensados em um único dizer. Seria igualmente injusto o mesmo ser feito com os ouvintes. 
     É na sessão de análise que podemos ver o quanto isso se torna impossível. É na singularidade do discurso de cada sujeito que se propõe a falar, que modos de subjetivação aparecem, todos distintos e ricos de significação e sintomas. Quando, nós ouvintes, colocamos frases como: "os Surdos são assim", ou: "ele fez isso porque é Surdo", "Surdo é sempre assim", etc, estamos eliminando toda a sua experiência de vida, todo o seu conhecimento, seus valores, seu encadeamento inconsciente, e aniquilando dentro de nós mesmos, a possibilidade de escuta do sujeito em sofrimento, com o objetivo de uma proposta de mudança de posição subjetiva, frente àquilo que o faz sofrer. 
       Os Surdos podem apresentar adoecimentos depressivos, obsessivos,  histéricos, fóbicos, ou psicóticos, assim como os ouvintes pois  seu inconsciente também é estruturado como uma linguagem e eles estão "condenados"  à trama simbólica que nos mantém falantes.  Agora, como o sintoma é vivenciado por cada um e os ganhos que se tem, isso só pode ser visto caso a caso.
     Visto isso, na sessão de análise está abolido qualquer pensamento preconceituoso que coloque Surdos e ouvintes em lados opostos. Também é proibido qualquer forma de igualdade, de equiparação, pois o que se busca é algo que aponta para uma diferença.
     O SUJEITO é único, singular. Não é Surdo, ou ouvinte, homem ou mulher, velho ou jovem. Ele simplesmente é e fala. As formações inconscientes se manifestam de forma exclusiva, ou seja, naquele sujeito e são como as digitais: cada um com as suas.
      

     

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

A imagem que o Surdo tem, muitas vezes é a imagem que o Surdo passa!

     Pelo que o Surdo luta? Por seus direitos. Direito de ser respeitado, de ser visto como minoria linguística e não como deficiente, direito de ter seu espaço garantido, direito de ser tratado como igual ao ouvinte, com relação as suas capacidades sociais, cognitivas, emocionais, enfim, a lista é grande e justa. O Surdo, apesar da demora da sociedade em conhecer sua língua, cada vez mais encontra espaços de encontros, discussão, possibilidades de provar seu valor e isso é demonstração de união e força entre a comunidade Surda.
     Por me encontrar junto a esse trabalho, luto junto, pois acho que o mundo é grande e tem lugar para todos. As diferenças não são privilégio de poucos, afinal somos todos diferentes.
     Porém, por acreditar nas possibilidades de crescimento subjetivo de cada um (mesmo quando não são meus pacientes) não posso me conformar com algumas situações em que o Surdo se coloca, dando a ideia errada de que ele é dependente da caridade alheia, ou que, por ser Surdo não pode assumir deveres sociais, como qualquer adulto normal. 
      Essa minha indignação se deu porque, mais de uma vez, me deparei com um homem, relativamente jovem, saudável, Surdo, que entra no ônibus, distribuindo papeizinhos que dizem mais ou menos assim: "Por favor, sou Surdo e moro com outro que depende de mim. Se você puder me ajudar eu agradeço. Ajude com qualquer valor..." Ele já subiu no meu ônibus várias vezes. Eu sempre falo com ele em Libras. Já o encontrei tantas vezes que ele já parou de perguntar se eu sou Surda ou ouvinte (essa é a primeira pergunta que um Surdo faz a alguém que fala Libras e que ele está conhecendo pela primeira vez). Da última vez que eu o encontrei, perguntei: "Você conhece a APADA?" Ele disse que sim. Falei então: " Você sabe, lá tem o Serviço Social que encaminha Surdos para o mercado de trabalho, se você quiser, pode ir lá nós vemos o que pode ser feito. Ele "fechou a cara", pegou meu papel, virou e depois de recolher todos os outros, foi embora.
     Que imagem de Surdo ele está passando para todas àquelas pessoas e para todas as outras que ele encontra todo dia, em que vai mendigar no ônibus? Existem várias mensagens explícitas e implícitas no papel que ele distribui. Pelo que está escrito, por ele ser Surdo precisa pedir, pois não pode trabalhar. E ainda tem outro, que mora com ele e depende dele. Ou seja, se é outro Surdo, é ainda mais dependente, pois vive das esmolas do amigo. Ou seja é mais "coitadinho" do que esse que pede. As pessoas do ônibus, que se comovem, não sabem da luta da Comunidade Surda, não sabem que Surdos podem trabalhar, estudar, ter filhos, muitos são politizados e se engajam nesse processo de assegurar uma vida digna.
    
     Essa atitude de recusa dos deveres, que alguns Surdos apresentam comprometem toda a comunidade Surda. São pessoas que abusam da boa fé dos outros e usam a Surdez para terem todos os direitos e nenhum, ou quase nenhum compromisso. É aquela pessoa Surda, (não que os ouvintes não façam isso) que se senta no banco dos "deficientes" mais não se considera  deficiente e quando vê um vovozinho precisando sentar, não dá o lugar, porque aí é deficiente. Ou, não é deficiente, porque Surdo não é Deficiente, mas tem passe especial. Ou então, o Surdo que diz que está fazendo faculdade, mas pede para um ouvinte conhecido dele, fazer os seus trabalhos. E, se o ouvinte se recusar, ele não é "amigo do Surdo". 
     Portanto, não se deixem enganar: direitos e deveres são iguais para todas as pessoas e malandragem a gente também encontra em vários seres humanos, não importando  suas diferenças.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O Surdo e a Saúde Mental: O que fazer?

     Quando um Surdo precisa ser atendido em seu sofrimento mental aqui em Niterói, procura, em primeiro lugar, a APADA- Niterói. Lá eles contam com um suporte terapêutico mínimo: Assistente Social e Psicologia. Temos uma escuta diferenciada, já que utilizamos a Libras no atendimento. Isso é ótimo e é assim mesmo que precisa ser em qualquer espaço que se propõe ao atendimento de Surdos.Atendemos assim, várias demandas: Histeria, Transtorno Obsessivo Compulsivo, ansiedades, fobias, alguns transtornos de Personalidade. Porém, esbarramos em um problema: o atendimento de Surdos Psicóticos. Para quem não está familiarizado com o termo, esses são alguns exemplos: Esquizofrenia, Paranóia e Transtorno Bipolar. Esses sintomas mais graves precisam de um suporte mais amplo, que nós, infelizmente, não temos condições, atualmente, de oferecer. Pois bem, esses são alguns exemplos de pessoas que deveriam ser referenciadas aos CAPS, pois necessitam de alternativas de acolhimento e tratamento que vão além do oferecido pela nossa Instituição. E, aí, o que fazer? Pois os CAPS, aqui em Niterói, são bem estruturados, existe um número razoável, (apesar da demanda ser enorme e, sendo assim, sempre há a necessidade de mais), além das residências terapêuticas, que, como o próprio nome já diz, são casas onde uma equipe de referência cuida dos moradores, usuários da rede de saúde mental, que são impossibilitados, por diversos motivos, de voltarem para suas famílias. Porém, apesar da proposta de inclusão social, esses lugares de tratamento não se adequam as necessidades de todos. Os Surdos estão excluídos, pois o trabalho é todo voltado para usuários ouvintes. 
     O que fazer com um Surdo, usuário de Libras, que interna em uma enfermaria do Hospital Psiquiátrico e que ninguém entende o que ele diz? Como fazer um diagnóstico sem escutá-lo? Como medicá-lo? Como referenciá-lo a um CAPS para tratamento contínuo, se ele é usuário de uma língua, que poucas pessoas compreendem?
     O que fazer? Essa é a pergunta essencial, que nos persegue. Mesmo nós, que trabalhamos com essa demanda,  por várias e várias vezes nos fazemos esse questionamento. O que fazer quando o sujeito nos procura e não temos como atendê-lo e não temos para onde mandá-lo. E estar fora do "laço social" duplamente. 
O que fazer?
     
     

domingo, 11 de novembro de 2012

O pai do Surdo, onde está?

     Escrever sobre pais de crianças Surdas não é tarefa simples para mim. Isso porque é difícil (mas não impossível) ver os pais participando da vida de terapia do filho Surdo. Normalmente, essa tarefa é delegada a mãe e em alguns casos à avós, tias, irmãs...
     Seria possível nos debruçarmos em algumas hipóteses para esse esvaziamento masculino no tratamento dos filhos Surdos e na própria relação familiar com os mesmos. Talvez isso aconteça porque, em nossa cultura - apesar de estar mudando- ainda vemos como obrigação feminina cuidar da prole, o que deixaria o homem livre para cuidar do sustento da família. Mas, então vejamos: hoje, a grande maioria das mulheres trabalham fora, às vezes somente elas trabalham para o sustento de todos, enquanto o homem fica em casa. Então, a vida ocupada do homem não seria um fator de impedimento para sua participação na vida do filho.
     Poderia se pensar também na própria condição machista feminina que se vê na obrigação de dar conta dos filhos, não conseguindo delegar aos maridos uma função que é vista como delas. Ora, isso poderia, aos poucos ser quebrado, se os próprios homens se colocassem com interesse em assumir os cuidados dos filhos. Mas será que não existe aí, uma acomodação masculina? Então, já que ela não quer deixar, também não vou insistir,pois isso pode gerar conflitos, poderiam pensar os pais. 
     Uma terceira hipótese poderia ser o fato de que alguns homens alegam "não ter jeito" para cuidar dos filhos, coisa que a mulher faz "melhor". Então, não conseguem estar nos lugares que expressam algum tipo de cuidado como clínicas, Associações de Pais, consultas... Conversar com a analista do filho, nem pensar! Psicólogo é coisa de maluco, ou um lugar muito feminilizado, porque "Homem que é Homem", não vai ficar falando dos problemas, se queixando, chorando por causa de filho! E se a Psicóloga for mulher, tanto pior. Ainda por cima, uma mulher para dizer o que está faltando, apontando suas faltas, lhe dizendo o que fazer! Isso é tão doloroso para alguns pais, que suas esposas acabam ouvindo o que pertence a elas e a eles também. Então fica tudo muito injusto. A mãe tendo que arcar com todas as responsabilidades, se sentindo culpada, incompetente e cobrada dos terapeutas, médicos, educadores...  
     Nós terapeutas também temos nossa parcela de responsabilidade nisso. Devemos tomar cuidado para não cair na armadilha de achar que, basta chamar a mãe para conversar, pois ela será nossa porta-voz para o pai da criança e que cabe a ela mudar o comportamento do pai dentro de casa. Se agirmos assim, também estaremos reforçando um comportamento cultural que impede o pai de estar presente e se manifestar no cuidado com o filho. O pai deve escolher se quer participar ou não das reuniões, mas ele deve sempre ser chamado.Chamá-lo é dizer que sua palavra tem um lugar e que ela é fundamental na vida do filho. O pai é aquele que, em psicanálise faz o corte entre a mãe e seu bebê, permitindo a entrada da criança no simbólico. Muitas vezes, na relação da mãe com o seu filho Surdo, essa entrada do pai se torna impossível em casa. Logo, o lugar da terapia não deve ser um reforçador dessa díade mãe e filho, interminável, mas um lugar onde o pai pode aparecer e ter sua palavra escutada para o bem do sujeito a advir.