O que fazer quando uma criança Surda, fala em análise, que foi abusada sexualmente e os serviços públicos que acolhem e cuidam dessa demanda não estão preparados para ouvir e prosseguir com o caso?
Trabalho em uma Instituição de atendimento aos Surdos e lá, temos um limite de atuação. Dependemos de toda uma rede social, prioritariamente pública, para dar prosseguimento ao tratamento daquele Sujeito. Afinal, a Instituição não pode tornar-se uma redoma, e nem deveria, pois o que se quer são sujeitos de direitos, conquistando-os e tendo acesso a todos os bens e serviços necessários à sua vida em sociedade.
Então, em uma de suas sessões, minha paciente começa a "brincar" e me contar sua brincadeira. Pega uma boneca e um boneco. Eles são primos. Ela sinaliza que o rapaz tem boné e ele está na sua casa, de férias. Faz o sinal do rapaz e faz o seu próprio sinal. Pega a casa de bonecas e diz que é a casa dela e que os dois estão na sala, vendo televisão. A responsável da minha paciente está em casa, no banheiro, pintando o cabelo. Então, minha paciente pega o boneco e senta junto da boneca. Ela pega a mão do boneco e junta com a mão da boneca e sinaliza que ele pegou a mão dela, segurou com força e colocou-a dentro de sua bermuda e ela faz o sinal de "pênis". Depois, diz que isso é feio e que ela não gosta. Pega a mão da boneca e bate no boneco. Fala que não gosta mais dele e pergunto se sua responsável sabe disso e ela sinaliza que não e que não posso falar nada, porque a mesma iria brigar com ela e bater nela.
É claro que chamamos a família, fizemos um relatório, comunicamos ao Conselho Tutelar. Porém, ela não mora na mesma cidade da Instituição e tudo que é muito difícil, fica mais difícil ainda. Ela vai para a avaliação no órgão criado para apurar suspeitas de abuso e ... ninguém consegue conversar com ela. Como fazer entrevista de revelação se ela não é oralizada e ninguém sabe Libras? A sorte dessa paciente, vamos dizer assim, é que a família acreditou nela, não a puniu, pelo contrário, resolveu o caso entre eles e o primo não vai mais na casa dela. Mas, nada se pode fazer no âmbito público.
A criança continuou em atendimento comigo mais dois anos e por muitas sessões ainda falava desse momento trágico de sua vida.
Assim como ela, acredito que muitas crianças Surdas devem sofrer muitos tipos de abuso. Essa paciente, por ter estudado em uma creche bilíngue e ter tido orientação, entendia que aquilo era uma violação de seus direitos. Mas, acredito que muitas, muitas crianças Surdas, que crescem em lares onde a família não se comunica com elas, onde não existem creches e escolas que desde cedo utilizem a metodologia bilíngue para facilitar o acesso ao conhecimento, sofrem violência sem nem sequer saberem que o que estão fazendo com ela é errado. Muitas devem passar por abuso sem reclamar, pois pela falta de orientação, acham que é uma prática comum, normal. Nem passa pela cabeça delas questionar o comportamento abusivo do adulto, pois não entendem o mesmo como sendo abusivo.
É primordial que existam cada vez mais profissionais conhecedores da Libras e do universo Surdo, para que pessoas não tenham suas vidas, sua sexualidade marcadas pela violência.